20.10.06


Carta Capital - 10/05/06
Maurício Stycer



Preconceito na mira Chico Buarque lança um novo CD depois de oito anos e, com a lucidez de sempre, fala sobre política, velhice e criação


Eleitor histórico de Luiz Inácio Lula da Silva. Chico Buarque aproveita lançamento de um disco inédito, depois de oito anos sem gravar, para dar o seu recado: nunca viu a figura do presidente da República ser tão desrespeitada quanto agora. Chico vê "uma rejeição desrespeitosa", "preconceitos arraigados", e a vontade furiosa de "despachar" Lula do poder, o que seria um grave "retrocesso" para o País. Intitulado Carioca, o CD passeia pelo Rio de Janeiro, falando em doses iguais de suas belezas e mazelas. O tema do disco é uma oportunidade para o compositor expor publicamente a sua visão mais que crítica da classe política carioca, a pior do País, na sua opinião. Nesta entrevista, com a lucidez habitual, Chico também discorre sobre violência urbana, drogas, velhice e imprensa.

Carta Capital: Os cariocas estão dispostos a ver o Rio de Janeiro de forma crítica, como o senhor propõe no disco e em recentes entrevistas?

Chico Buarque: Quando o Rio de Janeiro era a capital da República e havia um certo reconhecimento da hegemonia política e cultural da cidade em toda parte, a gente não precisava ficar sublimando essa superioridade. Hoje em dia, isso mudou. O peso é outro. O Rio perdeu importância. São Paulo cresceu muito. O bairrismo carioca que está surgindo veio como uma espécie de reação, um desdém, com ou sem justificativa, ao que vem de fora. E os cariocas contra-atacam São Paulo. Mas, até por sentimento arcaico de superioridade, o carioca se dá ao direito de falar mal da própria cidade.

CC: E o paulista?

CB: O paulista não fala mal de São Paulo. Quando vou para São Paulo, vou como visitante. Eu pego táxi no aeroporto e vejo aquele engarrafamento terrível. As pessoas não se queixam mais disso... E aí você fica sabendo de uma enchente na marginal Tietê, as pessoas demoram três horas para chegar em casa e nada. Ninguém reclama. Para nós, cariocas, isso é quase incompreensível. Não apenas no disco, mas também nas entrevistas, levanto questões para serem discutidas. Mas me dou ao direito de, como carioca, amar essa cidade e ao mesmo tempo apontar os problemas que são gritantes.

CC: Os políticos do Rio, por exemplo...

CB: Evidentemente, quando eu digo que os políticos do Rio são os piores, não quero dizer que são todos horrorosos. Acho que essa coisa de execrar a classe política como um todo é muito perigosa. especialmente para quem viveu a época da ditadura. para quem viu o golpe de 64, se arvorar como, o defensor da cidadania contra a corrupção, contra o comunismo etc. A política foi cerceada durante todos esses anos com essa justificativa: os políticos são todos iguais, os políticos são todos corruptos, a política é suja. Então, esse é um discurso muito perigoso.

CC: Quando o senhor se refere aos políticos, imagino que esteja se referindo à turma de ponta, que representa a cara do Rio na política nacional...

CB: Se você for olhar para cada partido, dá para ver isso. O PMDB deve estar com vergonha da atitude do Garotinho, que é a figura mais proeminente do partido no Rio. O PT carioca sempre viveu uma crise de identidade, com muitos conflitos. O PSDB é insignificante... O Rio é sempre um problema. A fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio foi nociva para o Rio. Talvez fosse necessária, não sei. Mas foi imposta e o resultado não foi bom.

CC: Mas é sempre bom lembrar que somos nós, os eleitores, que escolhemos os políticos...

CB: O Rio de Janeiro já foi mais progressista, mais expressivo. No começo da ditadura, o Rio de Janeiro era o Estado da oposição, uma preocupação para os militares. Hoje em dia, isso se diluiu um pouco. Há fenômenos novos, a própria emergência dos evangélicos. O Brasil mudou, com o Rio não foi diferente.

CC: Essa situação incomoda?

CB: Não, não me incomoda, mas... Isso é apenas um disco, não é um manifesto político. Agora, se eu sou chamado a falar de política do Rio, vamos embora. Confesso que não é o meu assunto preferido.

CC: Apenas mais uma pergunta sobre esse tema, então. O que o senhor acha da decisão do Garotinho de fazer greve de fome?

CB: Eu não preciso nem dizer nada. Eu li nos jornais que representantes do próprio partido estão constrangidos com essa história.

CC: Em uma canção do disco, o senhor defende de passagem a adoção de uma política de combate às drogas diferente.

CB: Acho tão inócuo culpar o consumidor ou pedir que ele se abstenha de consumir droga quanto o papa ou o Bush proporem a abstinência sexual como única alternativa para se prevenir contra a Aids. A repressão policial também não produz resultados. É uma questão complicadíssima. Como é que se vai legalizar o comércio de drogas? Isso está sendo discutido em muitos outros lugares. No México, na Holanda.. E aqui eu não vejo isso ser discutido. O problema não é levado a sério. Eu também não gosto de ficar pontificando. Não quero que a minha canção seja um hino, uma bandeira em defesa das drogas. Mas, de fato, eu acredito que é melhor legalizar as drogas. Traz menos danos à sociedade do que o tráfico. A tentativa de responsabilizar o consumidor é ingênua, mais ingênuo que o sonho descrito na canção, que fala da maconha da tabacaria e das drogas da drogaria.

CC: Como o senhor viu a ocupação das favelas cariocas pelo Exército?

CB: A ocupação das favelas me espantou muito. E o que mais me espantou foi o apoio maciço da classe média, das pessoas que escrevem no jornal. Eu entendo o fato de a classe média estar apavorada. Eu entendo o resultado do plebiscito das armas: a pessoa achar que andar armada pode ser uma solução, pode contribuir para a defesa. Eu discordo. A imagem de canhões apontados para a favela, para mim, é assustadora. E, nas cartas de apoio, as pessoas defendem soluções drásticas, como se isso fosse resolver o problema do morro. É um erro tratar todo habitante do morro como um delinqüente, dizer que todos os moradores das favelas precisam ser removidos de lá, quando não eliminados, como está mais ou menos aparente e às vezes até explícito. O que se ouve é: "Toca fogo no morro, resolve isso de uma vez".

CC: Esse conservadorismo não chega a ser uma novidade...

CB: Sim, mas está cada vez maior.

CC: No ano passado, o senhor manifestou a esperança de que a crise política tivesse algum proveito e não apenas provocasse "alegria raivosa" em quem não votou no Lula. Hoje, qual é a sua avaliação da crise?

CB: A alegria raivosa está menos alegre porque há uma grande possibilidade de reeleição do Lula. Os opositores se batem contra isso de uma forma brutal. Há insultos contra a figura do presidente da República como eu nunca vi anteriormente, nem mesmo ao Collor. Tudo bem, está certo, o Lula, em ano eleitoral, faz o que pode para se reeleger e a oposição faz a sua parte para impedir. Mas acho que há uma rejeição despropositada, algo que passa do limite. Acho uma besteira bandeiras como "Fora, FHC!" Na verdade eu nunca bati muito bem com certos setores do PT. Nunca fui petista, mas, como votei seguidamente no Lula, me chamam de petista. Os petistas sabem que eu não sou petista. E eu via muitas vezes em alguns militantes essa arrogância de achar que quem não é petista é calhorda. Isso, pelo menos, é um proveito que se tira da crise. Acredito que o partido possa se reerguer, mas carregará essa mancha para sempre. E isso é bom.

CC: Mas o senhor acha que a critica está acima do tom?

CB: Acho que há um desrespeito ao presidente Lula. Há um componente, sim,de preconceito de classe muito forte. As pessoas não diriam "vagabundo","burro"e "imbecil" para um professor como Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e poliglota, ou mesmo para um representante da elite nordestina como o Collor. As pessoas se dão ao direito de se referir ao Lula dessa forma. Esses preconceitos estão arraigados. Dizem: "Nós lhe prestamos um favor, para você ocupar o palácio por um tempo. Como não se portou direito, vai embora". Isso é grave. A eleição dele foi muito boa para o Brasil. E despachar o Lula dessa forma não é bom. Simbolicamente é um retrocesso. E é o que as pessoas querem fazer. Ou seja, pessoas que nunca aceitaram muito bem a eleição de um operário metalúrgico e agora se voltam com toda a fúria.

CC: Em uma passagem do DVD, alguém pergunta: "Quantos discos o senhor ainda pretende fazer?" Depois de pensar um pouco, a sua resposta é: "Enquanto a gente estiver fazendo alguma coisa, está bom". A frase revela uma certa preocupação com o envelhecimento.

CB: Nem tanto. É claro que isso me preocupa porque chega um momento em que a gente sabe que não resta tanta vida pela frente. Eu não gosto da idéia de morrer. Gostaria de viver muito, com saúde e com capacidade de criar. É isso o que gosto de fazer. Por isso que, enquanto estiver fazendo, está bom. É bom escrever um livro, é bom escrever canções, é bom gravar... Trabalhar e criar, para mim, é essencial. Agora, a pergunta é complicada. Cada vez mais os tempos de criação são mais extensos. Levo mais tempo para escrever uma música hoje do que há 20 anos. Levo mais tempo para escrever um livro hoje do que os primeiros livros. Essa demora entre uma coisa e outra, esses tempos aumentando e a perspectiva de vida diminuindo... Por isso eu brinquei com ele: "Isso é pergunta que se faça?"

CC: Este é um disco um pouco mais melancólico que os anteriores?

CB: Eu não acho. Isso foi dito do meu último disco, o anterior. Talvez a minha voz seja triste. Ou talvez porque, no outro disco, eu tenha escolhido tonalidades mais graves. Isso talvez pudesse conduzir as pessoas a achar o disco mais triste. Mas eu não achava as canções tristes, nem as letras nem nada. Esse eu acho até mais brilhante nesse sentido de tonalidade, é um pouco mais vivo. Tem canções alegres, canções irônicas e canções tristes. Tem uma tão triste que o autor da música, o meu contra baixista, falou: "É tão triste, tão triste. mas tão triste, que chega a ser engraçada". E ele falou isso sem conhecer a letra. Quando ele disse isso. eu pensei: "Que bom, então está certa a letra".

CC: Qual é a diferença de gravar um disco por uma gravadora estrangeira e outro por uma gravadora brasileira?

CB: Para mim, na prática, nenhuma. Hoje, preciso de mais tempo de estúdio. E eu tive aqui toda a liberdade para fazer, para mudar coisas, para ficar insatisfeito, refazer tudo... Como tinha antes em gravadoras multinacionais. A esta altura eu sou bem tratado. Agora eles têm paciência comigo. Antigamente eles não tinham essa paciência toda, não. As músicas novas levaram um ano e meio para serem escritas. E o disco mesmo levou oito meses de estúdio.

CC: Como o senhor encara esse processo cada vez mais massificador de divulgação? Em um mesmo dia, o resultado do seu trabalho estará em todos os jornais e revistas...

CB: Nessa parte eu não me meto. Acontece muito quando eu lanço um livro. Mas esse é um problema mais da imprensa do que nosso. Essa é uma preocupação do departamento comercial da gravadora. Eu me submeti a isso. Eles perguntam: "Topas dar entrevista?" Eu topei, estou aqui falando. Quando lancei o livro, eu não dei entrevistas. O meu editor ficou zangado: "Como é que você não deu entrevista para o livro e agora fala?"

CC: Por que não deu entrevista para o livro?

CB: É difícil, mas eu procuro evitar me valer do nome que tenho. Não quero tirar proveito de 40 anos de vida pública para promover um livro. Quero separar uma coisa da outra. Eu não vou ocupar o caderno cultural dos jornais com um livro que, se fosse de outro escritor, não teria esse mesmo espaço. Acaba tendo espaço, mas pelo menos eu não contribuí para isso. Agora eu resolvi falar, até para não ser aquele artista que não fala nunca. O sujeito que não fala nada é a Greta Garbo. Se ele fala muito, é arroz-de-festa. Então eu resolvi ser arroz-de-festa uma vez para não ser esquecido.

CC: Recentemente, o senhor foi vítima de um paparazzo, que o flagrou com uma mulher casada na praia. Pelo visto, o episódio está superado...

CB: Eu já enfrentei situações piores. Não sou um sujeito cheio de melindres, não sou não-me-toques. Já briguei com a imprensa bastante, por motivos mais graves. Eu não vou querer lembrar isso agora. Há 20 anos a barra era mais pesada. Essa coisa de invasão de privacidade é chato, mas eu não vou deixar de viver por essa besteira. Não vou deixar de andar na praia por isso. Tive problemas, no passado com vários jornais. E não fiz greve de fome por causa disso. Alguns passavam da conta, falavam demais, mentiam. Deixei de falar com alguns. Mas depois de alguns anos eles me absolveram.

CC: O senhor tem uma preocupação particular com a preservação da sua obra, não?

CB: Eu trituro todos os rascunhos e jogo na fogueira. Hoje, menos, porque muitos rascunhos são apagados no computador. Algumas vezes eu imprimo e corrijo a mão. Esse material impresso eu prefiro destruir. É uma questão de pudor. Não quero que ninguém veja um rascunho inacabado.

CC: Dessa forma, o senhor pretende evitar o "comércio de material inédito"?

CB: Isso me incomoda bastante, mas comigo não vai acontecer. Não deixei rastros. E não vou deixar.